Um jovem de T-shirt, um homem de camisa, uma mulher de calças, outra de saia comprida e véu islâmico. Em fila esperam para votar. O jovem aproxima-se da urna e esta foge-lhe repetidamente. Os outros vêm em seu auxílio e seguram a urna escorregadia tempo suficiente para que ele consiga votar. Da urna sai a lâmpada brilhante símbolo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). O filme passa em ecrãs plasma que descem do tecto do Grande Bazar de Istambul.
As ruas cobertas do bazar quase escapam à loucura de uma campanha que no resto da cidade cega de cartazes e bandeiras e ensurdece pela música que sai dos altifalantes de centenas de carrinhas. É Domingo, 15 de Julho. O comício do AKP está marcado para as 17 horas em Kazlisçesme, nos arredores, junto à linha de comboio que corre ao longo das muralhas bizantinas. A máquina do AKP está bem oleada e os homens atrás das bancas de campanha nas estações do centro correm a garantir que ninguém perde os últimos comboios. Já não é preciso pagar bilhete. E no interior das carruagens não se respira. Centenas de milhares de pessoas de todas as idades, como no filme de campanha. Em proporção, mais mulheres com véu islâmico do que no filme. Um mar de bandeiras e balões e um ambiente de festa popular. Quando o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan se avista ao lado a mulher, Emine, é gritado e aplaudido o seu nome. "Vão votar pelas liberdades ou naqueles que as bloqueiam?", pergunta com voz rouca à multidão. Entre as respostas, uma sublinha que as tensões políticas na Turquia não acabam hoje à noite, quando forem anunciados os resultados das legislativas antecipadas. "Çankaya será nossa!" Çankaya é a freguesia de Ancara que alberga toda a burocracia do poder. Em Abril, quando se aproximava o fim do mandato do actual Presidente, o AKP, que desde 2002 governa com maioria, nomeou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Abdullah Gül, candidato a presidente da república. Foi o único candidato e viu a eleição sucessivamente boicotada pelos deputados da oposição, que alegaram a inexistência de quórum. Segundo a oposição, a presidência era a peça que faltava para o AKP deixar cair a máscara. Porque, garante, o verdadeiro programa do partido que conduziu a Turquia à abertura de negociações de adesão com a União Europeia é a sharia (lei islâmica).
Gül também está no comício. Ao contrário de Erdoğan, chegou sem a mulher, Hayrunisa. Ambas usam véu islâmico. Atrás, os candidatos por Istambul estão alinhados no palco. Há muitas mulheres mas nenhuma usa véu islâmco. Enquanto Gül tentava ser eleito, em Abril e Maio, mais de quatro milhões de turcos saíram à rua. Munidos de bandeiras da Turquia e de imagens de Mustafa Kemal Atatürk, o general que em 1923 fundou a República turca, gritaram que não queriam o véu de Hayrunisa no Palácio Presidencial. O Exército, que já fez cair governos, reafirmou o seu papel de "defensor do secularismo", avisando contra intrusões islamitas. Jovens, modernos e religiosos como o blogger e editor de um dos diários de língua inglesa de Istambul, Mustafa Akyol, garantem que não era do véu de Hayrunisa que os manifestantes tinham medo. Atrás das bandeiras de Atatürk, assegura, marchavam os receios de perda de privilégios de uma elite herdeira da revolução kemalista e habituada a governar. Uma elite com medo das fronteiras não europeias do país, medo dos empreendedores que formam a nova classe média e vêm do interior da Turquia.
No último dia de campanha, numa sede do Partido Republicano do Povo (CHP), funcionários e militantes falam como se o partido, ou o partido de Atatürk como alguns preferem, ainda pudesse ganhar. Como se disso dependesse o futuro da Turquia. "Estas eleições são muito, muito importantes. O laicismo é muito importante para a República turca", diz Muzaffer Gürboga, professor de Química reformado. Aponta para uma fotografia de mulheres de negro da cabeça aos pés, túnica e véu, apenas os olhos a descoberto. Legenda: "Nem Irão nem Paquistão. Isto é Istambul". Ao lado de Gürboga, Erkan, motorista dos serviços municipais de 28 anos, queixa-se das privatizações e diz que a saúde ficou mais cara. Asil Kaya, licenciado em História, exibe o cartão de militante e aponta para o braço onde tatuou a sua crença mais segura: o rosto de Atatürk. O CHP não vai ganhar as eleições. As sondagens indicam que ficará acima dos 20 por cento, enquanto que prevêem para o AKP entre 38 e 48 por cento. "Algumas pessoas têm uma mentalidade muito religiosa. Estão cegas. E há pessoas sem dinheiro a quem eles podem ter dado alguma coisa", justifica Muzaffer Gürboga.
Nas ruas de Istambul, um dos cartazes do Partido da Acção Nacionalista (MHP), o terceiro da Turquia, destaca-se do vermelho e branco dominantes. O vermelho mantém-se, mas escureceu, em redor há negro e no centro está a palavra "terror". É uma bandeira fácil de agitar: quase todos os dias morre um soldado no Sudeste do país em confrontos com os independentistas curdos do ilegalizado PKK. O Exército exige uma incursão em larga escala no Curdistão iraquiano, onde estarão 3000 combatentes. Apesar do aumento de votos que o AKP deverá conseguir, é previsível que mais partidos entrem no Parlamento, o que pode impedir uma maioria absoluta. Colocam-se todas as possibilidades: uma grande coligação AKP-CHP ou a união do CHP com a extrema-direita do MHP. Mas Cengiz Aktar, director do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Bahçeşehir de Istambul, antecipa uma aliança entre o AKP e o Partido da Sociedade Democrática (DTP), quase todos curdos e a concorrerem como independentes. Mesmo nesse cenário - islamitas e curdos unidos para decidirem, por exemplo, o nome do próximo presidente -, não acredita num golpe de Estado: "O país cresceu demasiado, os militares não têm como controlá-lo. Mas podem destruir o equilíbrio na fronteira com o Iraque para imporem a sua presença na política."
(Fonte: Público com alterações)