14 janeiro 2008

A situação dos Alevitas na Turquia

Os Alevitas observam, desde o dia 10 de Janeiro, o primeiro dia do mês de Muharrem, o jejum de Muharrem, que se prolonga durante 12 dias até ao dia do Aşure (Aşure Günü).

O Muharrem é o jejum praticado pelos alevitas nos primeiros 12 dias do mês de Muharrem, ou 20 dias depois do Festival do Sacrifício (Kurban Bayramı). Durante esse período os Alevitas praticam o jejum do nascer ao pôr do sol e também não bebem água e não consomem carne. Evitam também qualquer tipo de prazer ou conforto e não utilizam facas, a arma utilizada no massacre de Hüseyin. Este sacrifício destina-se a lembrar o martírio do filho de Ali (primo e genro de Maomé), o Imam Hüseyin, durante a Batalha de Kerbala.

Há mais de um mês que se fala da realização de um iftar de Muharrem (jantar de quebra de jejum) em honra do mês sagrado dos Alevitas. Trata-se de uma iniciativa do Governo, a primeira do género na Turquia, com o objectivo de reunir o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdoğan, vários líderes espirituais alevitas, muitos deputados do Parlamento e diversos representantes dos Alevitas, no dia 11 de Janeiro, à semelhança do que costuma ser feito no mês do Ramadão para os muçulmanos sunitas. No entanto, esta atitude tem merecido algumas críticas por parte dos principais representantes dos Alevitas.

O jantar acabou por acontecer conforme o previsto, com a presença de cerca de 900 pessoas num hotel de Ancara e com o primeiro-ministro Erdoğan a praticar todos os rituais alevitas durante o encontro. A ementa foi especial e obedeceu a todos os preceitos alevitas, nomeadamente a não ingestão de carne e de água e a não utilização de facas.

As críticas alevitas têm a ver com o facto de considerarem a atitude do Governo como uma manobra para captar mais simpatias e votos junto dos Alevitas, e não uma vontade sincera de aproximação. Ouviram-se críticas do género: "O primeiro-ministro [Recep Tayyip Erdoğan] nem sequer sabe o que é o Alevismo [...] e nem sequer reconhece as nossas casas de culto [cemevi]. Temos primeiro de ver as reformas e só depois os espectáculos".

Dois deputados do partido de Erdoğan (AKP) de origem alevita, Reha Çamuroğlu e İbrahim Yiğit, entregaram a Erdoğan um pacote de reformas relacionado com o estatuto dos Alevitas, cuja população é estimada em cerca de 12 a 20 milhões na Turquia, país onde têm a sua maior expressão. No entanto, a comunidade alevita não acredita que os deputados alevitas do AKP sejam representativos da comunidade alevita.

Embora os alevitas se dividam quanto à classificação da sua fé, uma vez que uns a consideram como parte do Islão e outros a consideram distinta, todos pensam que Çamuroğlu não representa os Alevitas, que têm sido discriminados desde o Império Otomano e são conhecidos pelo seu posicionamento secularista desde a fundação da República.

"O facto da fé alevita ser ou não integrada no Islão é irrelevante para a discussão. Todas as organizações alevitas consideram que as cemevi são as casas de culto dos alevitas", disse Turan Eser, presidente da Federação Alevita-Bektaşi (ABF), com sede em Ancara e que representa 148 associações alevitas de todo o país.

Mesmo um líder alevita pró-AKP, Fermani Altun, presidente da Fundação Ahlul Bayt com sede em Istambul, e que é próximo da interpretação sunita do Islão, expressou descontentamento sobre a forma como a aproximação tem sido apresentada. "Çamuroğlu é um deputado de Istambul e nunca pôs um pé na nossa organização. Ele não tem os Alevitas em consideração," referiu Altun. Também acrescenta que o Governo não anunciou qualquer plano e que esse facto foi confirmado na reunião que teve a 28 de Novembro com o vice-primeiro-ministro Cemil Çiçek, altura em que este lhe terá dito não saber de nenhum plano para solucionar os problemas dos Alevitas. "Se o Governo tem um projecto para atender aos pedidos dosAalevitas, apoiá-lo-emos incondicionalmente, mas o Governo não tem respondido a nenhum dos nossos pedidos nos últimos cinco anos. Pedimos reuniões por várias vezes sem qualquer resultado," acrescentou.

Outro defensor do projecto de reformas, "se existe alguma," é o Professor İzzettin Doğan, presidente da Fundação Cem, com sede em Istambul, que defende um entendimento entre os Alevitas e o Islão. Doğan diz que os Alevitas foram "surpreendidos" porque não estavam à espera de tal aproximação por parte do Governo, que tem "recusado" trabalhar com as organizações alevitas não-governamentais até agora. Acrescenta que é compreensível que o Governo trabalhe com o seu deputado, Çamuroğlu, que é "um Alevita, apesar de tudo." "Do meu ponto de vista, o Governo quer encontrar uma solução para este problema tão antigo. A intenção é positiva. Todos podem cometer erros. Se se arrependem dos seus erros, temos de dar-lhes uma oportunidade", disse.

No entender de Cemal Şener, um intelectual alevita e autor de muitos livros sobre a história dos Alevitas e sobre o Alevismo, a relutância da comunidade alevita relativamente ao AKP é compreensível. "Eles [AKP] nunca fizeram nada de positivo em prol dos Alevitas. A população alevita está muito preocupada com a posição do Governo relativamente ao secularismo. Estamos preocupados com o encerramento dos refeitórios nas instituições públicas durante o Ramadão. Queremos ter garantias relativamente à protecção da República secular", disse Şener. Também se referiu às recentes declarações do deputado do AKP Mustafa Özbayrak, que se opôs à proposta de distribuição de uma verba do orçamento do Directorado dos Asuntos Religiosos para os Alevitas. 

No início de Novembro, no Parlamento, Özbayrak disse que os Alevitas são um ramo dos Xiitas, uma minoria do Islão, e perguntou o que aconteceria se outros grupos, como os Satanistas, pedissem também uma verba. 

"Os Alevitas estão cansados de preconceitos", disse Şener. "Temos de ver o que é que o Governo faz na prática. Não gostamos que a nossa fé seja utilizada como um jogo nas mãos de pessoas insensíveis. Veremos se eles são sinceros".

O vice-presidente da Fundação Gazi Cemevi, Munzur Ardoğan, lembrou as palavras de Tayyar Taş, presidente do Directorado dos Assuntos Religiosos, que ofendeu os Alevitas quando disse em 2002 que as cemevis são cümbüşevi, um local de entretenimento, em vez de um local de culto.

O culto alevita consiste genericamente em reuniões (cem) de homens e mulheres, que têm lugar nas cemevi. Na Anatólia as reuniões realizam-se tradicionalmente à quinta-feira à noite e são conduzidas por um Dede, o guia espiritual da comunidade, que tem uma ligação directa de sangue à família do profeta Maomé.

Os Alevitas queixam-se do que têm de enfrentar na sua vida diária devido à percepção distorcida que a maior parte dos Sunitas têm em relação a si. Existe a ideia de que durante as celebrações os Alevitas desligam as luzes e praticam incesto e adultério.

Durante o Ramadão é feito o anúncio diário nas várias televisões turcas, nomeadamente públicas, da hora do iftar (refeição do quebrar do jejum), algo que não é feito para o jejum do Muharrem. Os Alevitas reclamam também a pouca informação que é dada à população em geral sobre os Alevitas e o Alevismo, o que contribui para a distorção da realidade e para a incompreensão da sua fé.

Um dos deputados alevitas pelo AKP, İbrahim Yiğit, refere que o jantar conjunto entre elementos do Governo e os representantes alevitas é só o começo de "um projecto social de paz com os alevitas", acrescentando que "os Alevitas precisam de expressar a sua identidade livremente e sem relutância". Çamuroğlu mencionou um pacote de reformas a Erdoğan, que está "bastante receptivo" a uma aproximação, disse Yiğit, acrescentando que Erdoğan quer que Çamuroğlu seja o seu conselheiro sobre o assunto. "O primeiro-ministro prometeu reconhecer o estatuto legal das cemevi ", disse também Yiğit. "O pacote de reformas só tomará forma depois das discussões com os líderes das organizações alevitas e com intelectuais alevitas, incluindo Rıza Zelyut e Cemal Şener", disse, enfatizando que os Alevitas serão consultados.

Mais do que um reconhecimento oficial das cemevis como casas de culto alevita, os Alevitas pedem verbas proporcionais ao Governo.

Segundo o Professor Doğan, presidente da Fundação Cem, existem cerca de 4,000 casos pendentes no Tribunal Europeu de Direitos Humanos relativamente a cidadãos alevitas turcos que pagam impostos mas não recebem serviços religiosos por parte do Governo. "Os casos estão prestes a ser encerrados e parece que a Turquia vai ser penalizada se não tiverem sido tomadas as medidas necessárias", disse.

Os Alevitas também pedem a abolição do Directorado de Assuntos Religiosos por ser contrário à identidade secular do Estado. Em vez dessa instituição, dizem que os assuntos religiosos devem ser autónomos e devem receber a sua parte do orçamento geral. "A nossa proposta de receber uma parte do orçamento geral foi rejeitada em 21 de Novembro no Parlamento, mas vamos continuar a pressionar ", disse Turan Eser, presidente da Federação Alevita-Bektaşi.

Outra associação alevita com 48 filiais em toda a Turquia, a Associação Cultural Pir Sultan Abdal, apresentou uma petição ao primeiro-ministro em 2004 com 600,000 assinaturas. "Mesmo se o Directorado dos Assuntos Religiosos se mantiver, gostaríamos de ter uma parte do orçamento geral, mas o Governo deverá ser capaz de investigar para onde vai o dinheiro", disse Kazım Genç, presidente da associação. Referindo-se às notícias de que cerca de 3,000 líderes espirituais alevitas receberão salário do Governo, Genç disse que um Dede não pode receber um salário pela sua identidade alevita. "As comunidades alevitas suportam os seus Dede. Eles não são assalariados", disse Genç.

Outro pedido tem a ver com as aulas de religião nas escolas. Os pais dos estudantes alevitas e os próprios estudantes queixam-se de que o Alevismo ou é totalmente ignorado, ou é descrito como algo imoral e como uma religião não-muçulmana pelos professores. Os grupos alevitas querem a inclusão do Alevismo nas aulas de religião. Recentemente, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos deu razão a um pai alevita turco e disse que a inclusão no currículo de compulsão religiosa viola a Convenção de Direitos Humanos.

Os preconceitos podem ser uma das razões para que um grande número de Alevitas comece a publicitar a sua fé e cultura através de publicações, na televisão e na rádio e formando diversas organizações. Os Alevitas possuem neste momento, nomeadamente, canais de televisão e de rádio específicos.

As gerações mais antigas parecem sentir a dor e as feridas dos massacres mais profundamente do que as gerações mais novas. No entanto, esses ressentimentos passam para as gerações mais novas e continuam bem presentes. "As feridas do evento de 1993 em Sivas e de 1995 em Gaziosmanpaşa ainda estão bem presentes", refere um cidadão alevita de 45 anos. Refere-se aos maiores incidentes que envolveram Alevitas nos últimos anos. Em Sivas morreram 37 alevitas carbonizados dentro de um hotel. O fogo terá sido posto por fanáticos que não gostaram que uma associação alevita tivesse convidado o escritor Aziz Nesin para uma conferência no hotel. Os Alevitas sentem que o Governo não agiu convenientemente na punição de todos os responsáveis. O outro incidente foi em Março de 1995, quando alguém disparou num café frequentado por alevitas, em Istambul. Dois homens morreram, incluindo um líder espiritual alevita. Muitos Alevitas residentes nas imediações protestaram, porque sentiram que a polícia não foi totalmente séria na investigação. Sucederam-se mais manifestações em Istambul, e mais de 15 pessoas desarmadas, a maioria Alevitas, perderam a vida.

"Temos de deixar para trás os massacres e olhar para o futuro. Hoje toda a gente pode dizer que é Alevita", disse outro cidadão alevita de 27 anos. Assim como todos os outros Alevitas cépticos, ele também enfatiza as acções mais do que as palavras. "As organizações alevitas precisam de mais jovens em todos os níveis", disse.

Fermani Altun, presidente da Fundação Ahlul Bayt, por outro lado, diz: "Os Alevitas têm sido reprimidos há muitos anos. Precisam de uma mão amiga. Precisam de um abraço. O primeiro-ministro precisa de falar com cada organização alevita pelo menos durante dez minutos".

Existem boatos de que o primeiro-ministro Erdoğan está a considerar visitar uma cemevi. De acordo com a crença alevita, uma pessoa que não esteja reconciliada com outra não pode participar numa reunião de culto. A acontecer, esse acto poderá ser de importância histórica para a paz entre os Alevitas e o Estado turco.

Sobre o massacre de 1993:

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