A Turquia reagiu com fúria depois da assembleia nacional francesa ter aprovado na quinta-feira o projecto de lei que criminaliza a negação do alegado genocídio de Arménios, dizendo que essa acção provocou um forte abalo nas relações bilaterais.
“As relações turco-francesas, que têm sido meticulosamente desenvolvidas ao longo dos séculos, foram fortemente perturbadas por iniciativas irresponsáveis de alguns políticos franceses com pouca visão, baseados em alegações infundadas”, disse o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, depois dos legisladores, na assembleia nacional de 577 lugares, terem votado 106 a favor e 19 contra a aprovação do controverso projecto de lei. “Com este projecto de lei, a França está infelizmente a perder o seu estatuto privilegiado entre a população turca”, acrescentou.
A reacção turca surgiu apesar de terem sido dadas garantias pelo governo francês de que não apoia o projecto de lei e de que valoriza as relações com a Turquia. “Nós estamos muito entusiasmados com o diálogo com a Turquia, assim como com as fortes relações de amizade e cooperação que nos ligam a esse país”, disse o porta-voz do ministro francês dos Negócios Estrangeiros Jean-Baptiste Mattei. Catherine Colonna, a ministra fancesa responsável pelos Assuntos Europeus, também disse à assembleia nacional que não competia aos parlamentos “escrever a História”, e avisou que a passagem do projecto de lei poderia ser contraproducente.
Mas a tensão tem estado a fervilhar desde 2001, quando o parlamento francês votou para reconhecer as alegações de genocídio arménio. No entanto, depois da votação de quinta-feira, as críticas de Ancara atingiram o auge.
“Este projecto de lei, que ataca a liberdade de expressão de uma forma que não beneficia um regime democrático, causou indignação na nação turca, incluindo os nossos cidadãos arménios com quem temos convivido durante séculos”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros turco na sua declaração. Também referiu que o projecto de lei significa uma violação das normas europeias de liberdade de expressão, e acusou a França de aplicar padrões duplos. “É uma contradição evidente que o parlamento de um país cujos governantes dizem que reescrever a história não compete ao parlamento no que diz respeito a questionarem a sua própria história, faça um julgamento da história de outros países e se veja a si próprio com poderes para impôr sanções penais”, disse. “A credibilidade dos estados depende primeiramente da adopção dos valores que pregam”.
Espera-se que a entrada em vigor deste projecto de lei seja um processo demorado, uma vez que tem de passar antes pelo senado para outra votação, e terá de ser assinado pelo presidente antes de se tornar lei. Os observadores dizem que o governo francês pode demorar até levar o projecto de lei ao senado, e se houverem algumas mudanças no projecto de lei quando o senado proceder à votação, terá de ser sujeito a outra votação na assembleia nacional, onde o último dia de trabalho antes das eleições presidenciais e parlamentares de 2007 deverá ser por volta do final de Fevereiro de 2007.
Os governantes turcos têm prometido repetidas vezes que a sua reacção relativamente à França será contida, apesar de apelos públicos para um boicote total aos produtos franceses. Não será uma surpresa se as companhias francesas forem excluídas da maioria das propostas em numerosas áreas, incluindo a construção da primeira central nuclear turca. As relações políticas também poderão vir a ser reduzidas ao mínimo, possivelmente através da redução da representação em visitas mútuas e mesmo cancelamento de certas visitas.
O porta-voz do Parlamento, Bülent Arınç, disse que a acção da França reflectiu uma “atitude hostil” em relação à Turquia. “É uma decisão vergonhosa. É uma atitude hostil contra a nação turca [...]. É inaceitável.”
Relativamente à comunidade arménia em França, de cerca de 400 000 pessoas, disse ser “deplorável” que uma acção a ameaçar as relações francesas com a Turquia fosse entendida como uma “medida para agradar a um certo grupo étnico”, aludindo às eleições presidenciais francesas do próximo ano. “Aqueles que dizem que houve genocídio e aqueles que dizem que não devem gozar da mesma liberdade”, acrescentou. Em Bruxelas, o ministro do Estado Ali Babacan, que também é o responsável pelas negociações com a UE, disse que não se podia descartar um prejuízo para as empresas francesas. Acrescentou que era irónico que tal acção tivesse partido de um país fundador da UE e campeão da liberdade, e que foi acentuou a importância da liberdade de expressão nas suas negociações com Ancara. “O que aconteceu em França, acreditamos não estar em linha com os valores nucleares da UE”, disse.
A UE critica a votação:
A UE, que tem pressionado a Turquia para desenvolver a questão da liberdade de expressão, também criticou a aprovação do projecto de lei pelo parlamento francês, dizendo que poderá prejudicar o diálogo entre a Turquia e a Arménia. “A entrada em vigor desta lei [...] irá proibir o diálogo que é necessário para a reconciliação com o assunto”, disse a porta-voz da comissão europeia Krisztina Nagy. À questão se o projecto de lei poderia acrescentar mais um degrau para dificultar as negociações de adesão de Ancara, iniciadas há exactamente um ano, disse que o reconhecimento das mortes de 1915 como genocídio nunca foi uma pré-condição para a adesão.
“Não compete à lei escrever história. Os historiadores precisam de um debate”, disse.
Erdoğan: "A França manchou a liberdade de expressão"
O primeiro Ministro Recep Tayyip Erdoğan, atacou na sexta-feira a aprovação por parte do parlamento francês, da controversa lei que faz com que passe a ser um crime negar que Arménios foram objecto de genocídio às mãos do império otomano, classificando a legislação de “um ponto negro na liberdade de expressão, democracia e história”.
“Por um lado, [a França] tenta dar conselhos à Turquia relativamente ao Artigo 301 do Código Penal Turco (TCK) e, por outro lado, bloqueia a liberdade de expressão. Não é possivel entender ou explicar isto”, disse Erdoğan na cerimónia de inauguração da Avenida Turgut Özal, que constitui a ligação principal ao novo aeroporto de Ancara (aeroporto Esenboğa).
Enfrentando a crescente pressão da União Europeia para emendar ou eliminar artigos do seu código penal, que restringem a liberdade de expressão, a Turquia queixou-se de padrões duplos, dizendo que a França, um dos principais membros fundadores, bloqueou a liberdade de expressão com o projecto de lei que legislou na quinta-feira.
Erdoğan, nas suas primeiras declarações depois da aprovação do projecto de lei, disse que aqueles que pressionam a Turquia para melhorar a sua liberdade de espressão, deram um passo atrás nas liberdades. “Deviam primeiro resolver isso e depois bater à nossa porta. Nós nunca vivemos nada tão vergonhoso e nunca deixaremos que tal aconteça”, disse.
Erdoğan pediu à nação para ser moderada na sua resposta, e disse que a Turquia está a estudar medidas de retaliação contra a França. “O volume do comércio externo da Turquia com a França é de 10 biliões de dólares, e equivale a 1,5% do volume total do comércio externo francês. Nós vamos fazer os cálculos adequados e depois tomaremos as medidas necessárias”, disse.
Erdoğan não especificou, mas disse que o governo iria tomar medidas dentro e fora da Turquia. O parlamento francês votou o projecto de lei, apesar dos avisos de empresas francesas de que isso iria ter repercussões nos seus negócios na Turquia, um mercado crescente que importou 4,7 billiões de euros de mercadorias francesas em 2005.
Centenas de empresas francesas como a Renault e Carrefour têm grandes investimentos na Turquia, empregando milhares de trabalhadores turcos.
Esta semana, as associações turcas de consumidores e alguns sindicatos do comércio, apelaram a boicotes aos produtos franceses. A associação turca de consumidores, apelou aos seus membros para começarem a boicotar os produtos franceses, começando na sexta-feira com o grupo Total. “O boicote irá continuar até que a lei do denominado genocídio armenio seja anulada”, disse o presidente da associação, Bülent Deniz.
Em reacções na quinta-feira, o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Abdullah Gül, também disse que a Turquia iria considerar medidas de retaliação a adoptar contra a França. “Ninguém deveria esperar que a Turquia entendesse isto de ânimo leve”, disse. “O Parlamento vai reunir-se na terça-feira com uma agenda especial e não há dúvidas de que tomaremos medidas em todas as áreas”.
Gül irá reunir-se com legisladores sobre o processo que levou à aprovação do projecto de lei do genocídio. Mais tarde, os líderes dos partidos políticos com assento no parlamento reunir-se-ão. Espera-se que o líder do partido da oposição, Partido Republicano do Povo (CHP), Deniz Baykal, e o presidente do partido ANAVATAN, Erkan Mumcu, façam discursos. Uma declaração conjunta a condenar o parlamento francês é aguardada no final da sessão. “Os líderes dos partidos políticos, independentemente de terem ou não assento oparlamentar, irão entregar discursos. Tentaremos elaborar uma decisão parlamentar que critique o parlamento francês e que clarifique o significado da decisão aí tomada”, disse o porta-voz do parlamento, Bülent Arınç.
A comissão parlamentar da UE para a Harmonização, apelou à França na sexta-feira para rejeitar ou retirar o projecto de lei. “A nossa comissão condena esta decisão injusta, e espera que a França apele ao bom senso e corrija este erro”, foi dito em declaração.
Babacan: "Não haverá recuos nas reformas"
O ministro de Estado Ali Babacan, que também é o responsável turco pelas negociações de adesão à UE, disse que o que aconteceu em França não deveria ter impacto no processo de reformas na Turquia. “Nós nunca devemos olhar para os erros como modelo. Não devemos responder a erros com erros”, disse numa conferência de imprensa em Berlim, a sua última paragem na sua viagem pelas capitais da UE depois de Madrid e Bruxelas.
Babacan disse que o governo introduziu reformas para o bem da sua população, não só porque a UE pediu que o fizessem, e prometeu que Ancara irá continuar com as reformas políticas. Admitiu que a acção francesa poderá ter um efeito adverso no olhar dos Turcos em relação à UE, mas disse: “Talvez a Turquia venha a tornar-se um modelo para a Europa com as reformas políticas que está a desenvolver”.
Patriarca Mesrob II: "A França sabotou o diálogo"
O líder espiritual dos Arménios na Turquia, condenou o projecto de lei francês que criminaliza a negação do alegado genocídio arménio, dizendo que prejudicou o já restrito diálogo existente entre a Turquia e a Arménia sobre o assunto em questão.
“Os Franceses, que criaram várias barreiras para bloquear a entrada da Turquia na União Europeia, apagaram agora seriamente o diálogo entre a Turquia e a Arménia, que já era muito reduzido”, revelou o patriarca Mesrob II numa declaração.
A Turquia, protestando contra a ocupação arménia do território azeri de Nagorno-Karabakh e contra os esforços da diáspora arménia para ganhar o reconhecimento internacional do alegado genocídio, fechou a porta de embarque à Arménia, e não tem nenhuma relação diplomática com Yerevan.
Mesrob II disse que o projecto de lei, que prevê uma pena de até um ano de prisão e 45 000 euros de multa para aqueles que negarem o alegado genocídio, irá fortalecer os grupos ultranacionalistas e racistas tanto na sociedade turca como arménia.
“Eu considero esta medida anti-democrática, uma vez que restringe a liberdade de expressão dos indivíduos”, acrescentou.
Preocupações com a segurança
O patriarca também encorajou a uma “maior sensibilidade” relativamente à postura da comunicação social relativamente aos Arménios na Turquia, enfatizando que “eles nem são Arménios da diáspora nem cidadãos franceses”, e expressou preocupação com a segurança após a adopção da lei.
“Nós, como Arménios turcos, sentimos uma séria pressão sobre nós com esta lei”, disse, acrescentando que o patriarcado pediu ao governador de Istambul para tomar medidas relativamente à segurança das igrejas e escolas arménias.