Eram 19h30 locais, a 15 de Agosto de 1984, quando 30 rebeldes das Hêzên Rizgariya Kurdistan (HRK - Forças de Libertação do Curdistão) entraram em Eruh, povoação de 4000 habitantes nas montanhas do sudeste da Turquia. Divididos em três grupos, apoderaram-se de uma guarnição militar e mataram um soldado. Ocuparam uma mesquita e, por um dos altifalantes do templo, anunciaram a sua presença. Antes de recuarem para os seus refúgios, alardeando o feito de terra em terra, proclamaram na praça central o "início da guerra de libertação curda".
Vinte e cinco anos depois deste primeiro ataque do braço armado do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), espera-se que o seu fundador revele hoje um "roteiro" para solucionar um conflito que já causou 30 mil a 40 mil mortos. As propostas de Abdullah Öcalan, a cumprir uma pena perpétua desde a sua captura em 1999, deverão ser lidas pelos seus advogados durante o 1.º Festival de Arte e Cultura em Eruh - localidade agora governada pelo Partido para uma Sociedade Democrática (DTP), "braço político" do PKK.
Segundo o diário turco "Today's Zaman", o roteiro de Öcalan poderá incluir "expressões que se aproximam de um pedido de desculpas" e até "uma autocrítica". Composto por quatro capítulos ("Introdução, Princípios, Um Modelo de Solução e Princípios de Paz"), reivindica mais direitos e mais autonomia, cessar-fogo e uma amnistia, uma revisão constitucional e uma "comissão da verdade".
O que hoje será conhecido começou com um pedido de Öcalan aos seus advogados para contactarem intelectuais, escritores e organizações da sociedade civil. De 86 horas de reuniões (gravadas) com 55 personalidades saíram várias recomendações, que o chefe do PKK prometeu incluir na sua redacção final.
O Governo turco, por seu lado, acelerou uma "iniciativa para resolver a questão curda" e, embora as suas ideias sejam ainda vagas, sobressai a vontade de levantar as restrições à expressão da identidade curda, oferecer uma amnistia aos "militantes de base" do PKK e aumentar os incentivos económicos nas áreas de maioria curda.
Contactos indirectos?
O que levou o único prisioneiro da fortaleza de İmralı, no mar de Mármara, e o Governo a procurar uma saída para a mais longa insurreição curda na Turquia? Para Şahin Alpay, professor de Ciência Política na Universidade de Bahçeşehir, em Istambul, são quatro as principais razões. "Os militaristas em ambos os campos compreenderam que não há solução militar; Ancara reconheceu que a política de negação da identidade curda já não é sustentável; os Curdos do Iraque perceberam que precisam do apoio da Turquia (contra os Árabes) quando os Americanos se retirarem; todos (incluindo os EUA e a União Europeia) querem estabilidade para construir e operar os pipelines que atravessarão as regiões curdas da Turquia e do Iraque", especificou, numa entrevista ao Público por e-mail.
Convencido de que o Governo de Ancara não só tem "algum apoio dos militares" como está a "negociar indirectamente com o PKK e Öcalan", o veterano analista Alpay acredita que será possível abrir o caminho da paz. "Öcalan detém uma substancial influência e, embora os principais partidos da oposição [ultranacionalista], CHP e MHP, tenham uma atitude muito negativa, a maioria da opinião pública [na Turquia] é favorável a medidas para pôr fim às hostilidades - a minha previsão é a de que os partidos que se opõem à iniciativa do Governo serão duramente penalizados nas eleições parlamentares de 2011".
O académico Henri Barkey, do Carnegie Endowment for International Peace, em Washington, autor de "Turkey's Kurdish Question", avalia assim o que será a reacção na Turquia às propostas do PKK: "Vão ignorar o roteiro e fingir que nunca aconteceu, mas se contiver elementos de valor, o AKP [Partido da Justiça e Desenvolvimento, no Governo] vai usá-los, sem dizer que são as ideias de Öcalan."
As autoridades turcas "vão (e devem) apelar ao PKK para pôr fim à luta armada", afirmou Barkey ao Público, por correio electrónico. Inquirido sobre quais as linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas, o antigo conselheiro do Departamento de Estado americano respondeu: "O Governo não pode ser visto a dialogar com Öcalan e não pode concordar em discutir uma federação ou autonomia - o resto é semântica".
Numa entrevista à Rádio Europa Livre, Barkey adiantou: um dos principais problemas é a revisão da Constituição, de modo a que "a definição de cidadania seja mais inclusiva" para os Curdos. Öcalan quer, alegadamente, um regresso à de 1921, que dava amplos poderes a parlamentos provinciais, nos campos da educação, saúde ou desenvolvimento económico.
Rever a Constituição, explica Barkey, "é ir contra a própria definição do Estado turco, tal como concebida por Mustafa Kemal Atatürk, e há muitas pessoas para quem tudo o que o fundador disse é sacrossanto, imutável e intocável." O maior obstáculo, diz Barkey, poderá ser o Tribunal Constitucional (TC). Mesmo que o Governo consiga aprovar a sua iniciativa no Parlamento, onde o AKP tem maioria absoluta e o apoio de outros partidos, os juízes do TC, "que não é um organismo independente, mas muito ideológico", poderão chumbar o que foi aceite pelos deputados.
Ainda que isso possa acontecer, Barkey admite que os militares, cujas opiniões influenciam os veredictos do TC, "concluíram que jamais poderão vencer a guerra contra o PKK, ou os Curdos." Há outro factor que este professor na Universidade de Lehigh salientou ao Público: "Nos últimos anos, o DTP aproximou-se ainda mais do PKK. Os Curdos sempre se envolveram em política e raramente sob uma bandeira que destruísse a sua identidade curda - os deputados curdos do DTP são tão nacionalistas como os do AKP."
O ponto de viragem
Os sinais mais fortes de mudança na Turquia surgiram em 2005 quando o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdoğan, reconheceu, na província de Diyarbakır, no Sudeste, que o Estado cometeu "erros" na sua relação com os Curdos, salientou Amberin Zaman, do German Marshall Fund dos EUA.
Seguiram-se contactos secretos entre o chefe dos serviços de espionagem, Emre Taner, e o governo regional curdo no Norte do Iraque, para convencer os rebeldes do PKK, entrincheirados nas montanhas que separam o Iraque do Irão, a depor as armas. Esta diligência falhou devido aos entraves colocados pelos "falcões" no Exército turco e no PKK.
Outro sinal foi a decisão da administração Bush, em 2007, de partilhar em tempo real dados recolhidos por satélite sobre as actividades do PKK, permitindo que aviões de guerra turcos bombardeassem as suas bases no Norte do Iraque.
"Isso mudou, dramaticamente, o equilíbrio de forças", vincou Amberin, correspondente da revista "The Economist" em Ancara. "O PKK foi obrigado a ficar na defensiva e sofreu pesadas perdas. Dissipou-se a percepção de que os EUA favoreciam os Curdos iraquianos em detrimento da Turquia (devido à recusa de Ancara em abrir o seu território a uma segunda frente contra Saddam Hussein em 2003)."
A nomeação, em Agosto de 2008, do general İlker Başbuğ como chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Turcas (TSK) foi outro sinal. Em 15 de Abril último, o general usou a expressão "povos da Turquia" e não "Turcos".
Falou dos Curdos e da necessidade de rever a lei para que membros do PKK possam entregar as armas e deixar as montanhas. Considerou que "um terrorista também é um ser humano". Curdos e Turcos definiram este discurso como "histórico".
O Exército tem mantido o silêncio à medida que o Governo vai procurando apoios para a sua iniciativa. A imprensa turca vê nisto uma estratégia: se o plano resultar, o Exército vai recolher os louros; se falhar, juntar-se-á à oposição contra o AKP.
Outro sinal vital: numa recente entrevista a um jornal turco, Murat Karayilan, o principal comandante militar do PKK, disse que a independência já não está na agenda da organização. Mostrou-se disponível para negociar através de "terceiras partes" - alusão implícita ao DTP -, "se fosse necessário". Posteriormente, o líder do DTP, Ahmet Türk, lamentou um ataque do PKK contra soldados e deixou um aviso: "Os que procuram uma solução devem tirar o dedo do gatilho".
Foi uma rara manifestação de independência do líder do DTP (o PKK costuma assassinar os críticos), notou Amberin Zaman, e Erdoğan recompensou-o com um primeiro encontro, no dia 5 de Agosto, no Parlamento.
Em todo este processo, uma das figuras mais optimistas é o Presidente Abdullah Gül. "Encontraremos uma solução", declarou ao jornal "Sabah". "Esta questão [curda] é a mais importante questão na Turquia. Não enterremos as cabeças na areia. Temos aqui uma oportunidade histórica."
(Fonte: Público)
Sem comentários:
Enviar um comentário