04 junho 2013

Algo está a acontecer na Turquia

Na Turquia, milhares de pessoas estão nas ruas a protestar contra o Governo e contra o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan. Liberais, secularistas, islamitas, esquerdistas e nacionalistas, entre outros, todos convergem para um mesmo centro gravítico de protesto. Independentemente das filiações ou simpatias políticas, religiosas ou ideológicas, todos os que discordam das políticas de intolerância do Governo cantam nas ruas "lado a lado, contra o fascismo" ou "Governo para a rua!". Erdoğan designa-os de pequeno grupo de marginais. Contudo, para além de serem aos milhares, esta multidão inclui cidadãos comuns que querem exprimir o seu descontentamento com o Governo. Os manifestantes têm tido como resposta a violência policial desmesurada e a desconsideração dos meios de comunicação turcos. Porém, devido à partilha nas redes sociais das fotos e dos vídeos da reação violenta do Governo, mais e mais pessoas saem das suas casas para se juntarem à multidão. Apesar dos protestos terem começado em Taksim, indicado nos guias turísticos como o coração de Istambul, rapidamente se alastraram a muitas outras zonas de Istambul e da Turquia.
Os protestos em larga escala foram desencadeados pelo uso desproporcionado da força policial contra um pequeno grupo de pacifistas que se manifestavam pela preservação do parque Gezi. O parque Gezi está situado na praça de Taksim e é uma das únicas áreas verdes do centro de Istambul. Os protestos começaram na segunda-feira de 27 de Maio com um assentamento pacífico, uma tentativa para impedir um projecto imobiliário que visa substituir o parque por um centro comercial. Durante vários dias e várias noites, cerca de 50 pessoas levaram a cabo um protesto que envolvia piqueniques, música e leituras. Quando a polícia usou canhões de água e puxou fogo às tendas para dispersar os manifestantes, mais pessoas se juntaram ao protesto. E quanto maior o número de manifestantes, maior o nível de violência policial. Na sexta à noite (1 de Junho), milhares de pessoas (muitas delas nunca participaram numa manifestação) saíram de casa e encheram Taksim. E foram para Taksim mesmo sabendo que teriam que enfrentar o gás lacrimogéneo, usado de forma regular pela polícia turca nas manifestações do último mês. Como previsto, tiveram de aguentar com o gás. Enquanto a polícia cercava a zona de Taksim, e usava gás lacrimogéneo em todas as ruas daquela zona da cidade, as multidões cantavam: "venha o gás, venha o gás! Tirem os capacetes e larguem o bastão para ver quem é mais duro". Entretanto, mais pessoas começaram a encher as praças de outras cidades turcas. Nas áreas residenciais gente de todas as idades saiu para a rua a bater em tachos e panelas. No momento em que estas palavras estão a ser escritas, as manifestações, a violência policial e a negação do caráter maciço deste protesto por parte de Erdoğan continuam.
Protestos desta dimensão nunca poderiam ter como causa única a questão do parque Gezi. O descontentamento na sociedade turca tem vindo a crescer com a intensificação dos ataques a todo o tipo de oposição ao partido do governo (AKP - Partido da Justiça e do Desenvolvimento). O AKP, fundado em 2001 por membros dos partidos islamitas anteriormente ilegalizados, definiu-se como um partido conservador democrata e assegurou que seria o pioneiro da democracia e da tolerância. Em 2002 venceram as eleições com 34% dos votos e formaram um Governo de partido único. Em 2007 aumentaram a base de apoio para 43% dos votos. E em 2011 chegaram aos 50%. Este sucesso traduziu-se em grandes níveis de confiança nos membros do Governo. O líder do partido, e primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan, referiu várias vezes "o meu povo votou em mim, eu tenho a autoridade popular. Não preciso de pedir autorização a ninguém para levar a cabo as minhas políticas". O sucesso eleitoral do AKP foi acompanhado por um período de estabilidade e progresso económico. Durante os seus mandatos a economia recuperou da crise turca de 2001, a Turquia tornou-se na 16.ª economia mundial e conseguiu recuperar dos efeitos da crise financeira mundial. No entanto, os resultados económicos tiveram como contrapartida o aumento da intolerância à crítica política. As prisões e as detenções generalizadas de jornalistas e estudantes que criticam o Governo foram um dos maiores exemplos de intolerância à oposição. Actualmente, existem mais de 100 jornalistas detidos/presos/condenados devido às suas opiniões, publicações e, nalguns casos, pré-publicações. Como referido num artigo dos Jornalistas sem Fronteiras, " A Turquia é neste momento a maior prisão do mundo para jornalistas, um triste paradoxo para um país que se apresenta como um modelo regional de democracia".
As restrições oficiais à celebração dos feriados nacionais na Turquia têm sido um motivo de preocupação para os secularistas republicanos. Em Outubro de 2012, a proibição governamental da caminhada, levada a cabo por cidadãos e altos-cargos oficias, ao Mausóleu de Kemal Atatürk, fundador da Republica Turca, no Dia da Republica Turca, gerou uma grande sublevação nacional. As pessoas que ainda assim decidiram visitar o túmulo de Ataturk com bandeiras da Turquia na mão, depararam-se com o bloqueio policial e com gás lacrimogéneo. O líder do maior partido da oposição o CHP (Partido Popular Republicano, conhecido como o partido de Atatürk por ter sido fundado por este) também estava entre a multidão.
O 1.º de Maio, o Dia do Trabalhador, também sofreu restrições. O governador de Istambul proibiu todo tipo de celebração ou manifestação na praça de Taksim, vista desde há muito como um local símbolo da resistência e da liberdade. Para impedir o acesso a Taksim, os transportes públicos foram suspensos e o acesso a uma ponte pedonal foi bloqueado.
Outro aspecto que alimenta a crescente revolta contra o possível desaparecimento do parque Gezi está relacionada com a política governamental continuada de destruição de monumentos históricos e culturais em Istambul. Recentemente, os históricos cinema Emek e a pastelaria Inci, reconhecidos como património de Taksim, foram demolidos apesar do desagrado da população. A polícia usou gás lacrimogéneo num pequeno grupo de manifestantes pacíficos pela salvaguarda do cinema Emek, um grupo de artistas que incluía actores e actrizes nacionais famosos. De facto, o uso excessivo de gás lacrimogéneo, canhões de água e bastões em manifestantes tem vindo a tornar-se tão usual que, ainda antes dos protestos do parque Gezi se terem iniciado, um cidadão dos EUA residente na Turquia queixou-se de ter sido sujeito a gás lacrimogéneo por três vezes numa semana enquanto se dirigia a pé para o local de trabalho em Taksim.
Outro factor de agravamento da insatisfação popular tem sido a percepção de crescente intromissão governamental no estilo de vida da população. Esta tomada de consciência foi agravada no início da semana passada quando o Parlamento turco aprovou leis para restringir o consumo de bebidas alcoólicas. Na mesma altura houve um "protesto de beijos" em Ancara contra as advertências dadas pelos maquinistas do metro para que os passageiros "agissem de acordo com as leis morais".
Por último, o silêncio dos meios de comunicação social turcos relativamente aos protestos do parque Gezi tem contribuído de forma significativa para a intensificação do mal-estar da população. No fim de semana não houve cobertura jornalística dos milhares de manifestantes atingidos em várias cidades turcas com gás lacrimogéneo, balas de borracha e jactos dos canhões de água. As redes sociais foram (e, em grande medida, continuam a ser) a única via de comunicação para os manifestantes. Quem não tem acesso à internet muitas vezes ignora o que está a ocorrer nas suas próprias cidades. Um jovem escreveu no facebook: "Eu vivo em Taksim, nos últimos dois dias a minha casa tem estado cheia de gás lacrimogéneo, e os meus pais não me ligaram uma única vez porque não fazem ideia do que se está a passar."
A mobilização de pessoas através das redes sociais não foi bem acolhida pelo primeiro-ministro. Erdoğan declarou inclusive que "as redes sociais são uma fonte de problemas", e que aqueles que estavam a protestar não passavam de um grupo de delinquentes, marginais com ideias terroristas. Chegou ainda a ameaçar os manifestantes com a pena de morte, abolida na Turquia em 2002. Afirmou também que "para cada 100 000 manifestantes, trarei para as ruas 1 000 000 do meu partido." Erdoğan assegurou que não irá recuar e que mandará até construir uma mesquita junto ao centro comercial da praça Taksim.
Apesar de tudo, os manifestantes turcos parecem contentes. Parecem acreditar numa Turquia melhor, tolerante e democrática. Parecem apreciar o crescente sentimento de tolerância. Os adeptos de clubes de futebol rivais (quem conhece a sociedade turca sabe bem a intensidade desta rivalidade), os religiosos, os liberais, os esquerdistas, os nacionalistas, os gays, as prostitutas, os curdos, os alevis, protestam lado a lado e ajudam-se mutuamente. Os cartazes erguidos pelos manifestantes com o mote"uma árvore morre, uma nação acorda" é reveladora dos sentimentos das pessoas que inundam as ruas turcas nos dias que correm.


(Fonte: Selin Turkes/Expresso)

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