17 maio 2009

As duas caras da moderna Turquia

No avião que segue de Istambul para Ancara viajam duas mulheres que simbolizam a Turquia actual: uma oculta o corpo enquanto amamenta um bebé recém-nascido; outra exibe os seios sem pudor numa blusa desabotoada.
O futuro do Estado, explica Can Paker, presidente da Turkish Economic and Social Studies Foundation "dependerá muito da capacidade de conciliar dois principais blocos: o secular e o de orientação islâmica". A Turquia, que Cavaco Silva visitou esta semana, "está numa encruzilhada há mais de 100 anos, mas uma coisa é certa, não se vai desviar do caminho para o Ocidente, porque este faz parte do seu ADN", acrescenta Paker, presidente e director-geral da Henkel Turkey e administrador da poderosa Sabanci Holding. Foi uma aula de política o que Paker deu a um grupo de jornalistas convidados pela Delegação da Comissão Europeia na Turquia para discutir, em Istambul e em Ancara, o processo de adesão da Sublime Porta à UE. "Este país foi estabelecido por uma burocracia civil-militar", explica. "O núcleo era uma elite e o resto camponeses. A população rural tornou-se uma classe média que se foi desenvolvendo ao mesmo tempo que a classe média da elite. O que se assiste actualmente é a uma luta de classes, não de género marxista, mas entre duas classes médias apostadas em beneficiar da prosperidade económica. "O duelo islamismo versus secularismo é, sobretudo, uma fachada", comenta Paker. Com o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, pró-islamita) a dominar o Parlamento, o Governo e a Presidência da República, o poder dos militares (a velha classe média) está a diminuir, porque aumentaram as pressões da sociedade civil e da União Europeia. O AKP, a nova classe média, "sabe que não se pode desviar da Europa" porque isso significará "o regresso da velha elite" que, neste momento, se encontra "em muito mau estado", frisa Paker. O Partido Republicano do Povo (CHP), de Deniz Baykal, "deixou de ter qualidades para deter o poder - não tem uma política económica, não tem perspectivas de política externa, só existe como protector do secularismo - é o seu argumento exclusivo. A única oposição que a Turquia enfrenta é a da União Europeia e das ONG. O AKP não enfrentará adversários enquanto satisfizer a nova classe média", que não tem vergonha nem medo de assumir religião e tradições.
Hakan Altinay, director da Open Society Foundation, admitiu que "há uma guerra cultural entre seculares e religiosos", mas, para a Europa, "os secularistas são agora o lado mau, enquanto o AKP está no campo dos bons". Apesar de todos os cidadãos "ainda não terem direitos iguais, de haver suspeitas de favorecimentos ilícitos e de outras falhas", Altinay salienta que algumas das reformas adoptadas por pressão da UE nunca pensou vê-las concretizadas no seu tempo de vida. Exemplos: a abolição da pena de morte e prisão perpétua para crimes de honra; uma televisão e uma rádio, escolas e universidades em língua curda; um chefe de Estado (Abdullah Gül) eleito apesar de um ultimato dos militares; uma mulher com veú islâmico no palácio presidencial (a primeira-dama); a exigência de estudos superiores para ingressar na polícia e no exército. Conclusão de Altinay: "A Turquia torna-se uma sociedade melhor à medida que se aproxima mais dos valores da União Europeia".

Moderna e europeia

Hugh Pope, analista do Think Tank International Crisis Group, realça que "a Turquia já é uma sociedade modernizada mas aspira a mais: quer ser europeia". Não lhe interessa ser um Estado árabe. "E não se pode voltar ao faz-de-conta: a Turquia fazer de conta que entra; a UE fazer de conta que aceita". Este ano é decisivo. Dilek Kurban, professora de Direito na Universidade de Boğaziçi, constata que "a UE está a discutir a sua identidade através do processo de adesão da Turquia. O que é ser europeu? Interessante, porque os muçulmanos já lá estão e não vão desaparecer". Embora critique o AKP por não ter ainda eliminado a discriminação de que continuam a ser alvo as minorias, incluindo os muçulmanos alevitas, como ela, Kurban reconhece que já foi percorrido algum caminho. A televisão curda, por exemplo, "foi uma boa ideia, apesar de ter chegado com dez anos de atraso", o que permitiu aos separatistas do PKK fazer a sua propaganda através de emissoras no exterior.

Que civilização?

Paker, Altinay, Pope e Kurban depositam agora grandes esperanças na revisão da Constituição, que garantirá mais direitos e liberdades, e no desfecho do processo Ergenekon - nome de uma organização clandestina, que incluiria generais, juízes, políticos e jornalistas, alegadamente envolvida numa conspiração para derrubar o Governo. "Nos anos 90, estas pessoas, ligadas ao Exército, matavam nacionalistas curdos e agora estão na cadeia", diz Hugh. "Eu acredito que será investigado o que se passou no Sudeste da Anatólia, que valas comuns serão abertas e que os responsáveis serão castigados", confia Kurban. Na sede do CHP, o partido criado por Mustafa Kemal Atatürk, a decepção é visível no rosto envelhecido de Onur Öymen, o vice-presidente, de voz e mãos trémulas. "Não podemos defender os nossos valores desde que o AKP governa sozinho [foi um terramoto político a primeira vitória eleitoral que dispensou uma coligação], por isso pedimos ajuda aos nossos amigos europeus para travar as ameaças ao secularismo. A Turquia não pode entrar na UE se não for uma república secular." Sobre o caso Ergenekon, denuncia escutas ilegais e detenções sem culpa formada. "Este é o mais grave processo em curso na Turquia", queixa-se. "Ninguém sabe quando e como vai acabar." Öymen não parece ver nada de positivo nas políticas do AKP: acusa-o de limitar a liberdade de imprensa, critica a aproximação à Arménia (porque "hostilizou o aliado Azerbaijão") e condena as boas relações com o Irão, o Sudão e o Hamas. Opõe-se também à participação da Turquia na Aliança das Civilizações. "Que civilização?", interroga. "Não fazemos parte da mesma, ou deixámos de ser europeus para ser islâmicos?"

(Fonte: Público)

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